segunda-feira, 27 de março de 2017

NO DIA MUNDIAL DO TEATRO 2017 | « Não conseguimos deixar de pensar que, se queremos combater as ditaduras, os fascismos e outros fundamentalismos, é também ao Teatro que precisamos de dar apoio, porque é a única maneira de a maior parte das pessoas a ele terem acesso, ampliando o seu espírito crítico, emancipando-se na prática de uma cidadania mais ativa»







Mensagem da SPA, da autoria do encenador e cenógrafo João Brites para o Dia Mundial do Teatro (27 de Março)


Como quem chora e ri com a própria sombra

Neste Dia Mundial do Teatro de 2017, é para ti que já não tens sombra, que nós escrevemos. Gostaria que soubesses que por toda a parte se faz Teatro. A consciência de que temos uma sombra que nos pertence, constrói um outro eu com quem podemos dialogar. Os filósofos gregos apropriaram-se da ideia de sombra e atribuíram-lhe significados que identificamos como uma aproximação ao nascimento do Teatro, mas é muito provável que os nossos antepassados tenham exercitado a capacidade de jogarem com as sombras projetadas nas cavernas quando dominaram a capacidade de fazer fogo. As pequenas comunidades elaboraram as sonoridades que progressivamente se organizaram nos fonemas que permitiram contar as primeiras histórias. Muito antes da capacidade de escrever, de registar as experiências vividas e as outras, inventadas, os contos terão passado de geração em geração sem deixarem vestígios materiais.

(...)

Durante dezenas de anos a continuidade de projetos como o da Cornucópia cativou um lugar na memória de cada um. Aquela sala de teatro que, como uma caverna, persistentemente escavaram, - e onde partilhámos tantas sombras que nos ajudaram a crescer como pessoas e como artistas, - passou agora para as mãos de quem sinta a necessidade de a usar preservando o seu espírito. Mas se é indispensável não perder a memória, também é indispensável manter viva a curiosidade em acompanhar os projetos que, com maior ou menor longevidade, se afirmam e muito especialmente os que nascem, titubeantes como nascem todos os seres vivos, e ousam lançar as bases de uma continuidade que não quer esmorecer perante as primeiras dificuldades. 
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Também é para mim que faço Teatro, que agora escrevo, porque ando quase sempre insatisfeito com o que faço e quase sempre revoltado com o mundo que me rodeia. Diria que temos de continuar a sonhar com um país que pensa e escreve na sua língua; a acreditar que existem políticos que foram eleitos para contrariar a submissão da atividade cultural e artística ao negócio e às leis do mercado, e que acima de tudo, dignificam a vasta comunidade a que pertencem, ao não sujeitar as leis e as normas ao senso comum das maiorias e da sua natural apetência pelo que é mais banal e vulgar. Não conseguimos deixar de pensar que, se queremos combater as ditaduras, os fascismos e outros fundamentalismos, é também ao Teatro que precisamos de dar apoio, porque é a única maneira de a maior parte das pessoas a ele terem acesso, ampliando o seu espírito crítico, emancipando-se na prática de uma cidadania mais ativa. Se cada criança do meu país tivesse a possibilidade de assistir pelo menos a um espetáculo de teatro por ano, se se conseguisse rentabilizar o investimento que o estado fez nos últimos anos ao promover, escolas, professores, programas, construção ou recuperação de teatros, de redes de articulação e de divulgação de espetáculos, poderíamos verificar que não somos suficientes e que de nada vale sermos menos a pensar que assim cada um teria mais recursos. A qualidade precisa das quantidades para se manifestar.

Finalmente para ti que nunca vens ao Teatro é preciso que saibas que continuaremos sempre por aí à tua espera. Se um dia tiveres esse desejo, tem a certeza de que te receberemos de braços abertos. Nessa altura vamos chamar a tua atenção para o facto de não existir propriamente um Teatro, mas muitas maneiras diferentes de fazer Teatro e que, a pouco e pouco, precisarás de te confrontar com essa multiplicidade de estilos para seres capaz de fazer as tuas escolhas.

Acredita que mesmo nos períodos mais horríveis, sujeitos a bombardeamentos ou a perseguições, poder-nos-ás encontrar, como sempre tem acontecido, nas catacumbas das cidades, nas caves dos prédios destruídos ou refugiados nas montanhas mais inóspitas, escondidos nas suas cavernas. Mesmo isolados ou prisioneiros continuaremos a observar a nossa sombra e com ela aprender a ler e a compreender o que ela tem para nos ensinar. Enquanto não for possível roubarem-nos a sombra, não deixaremos de brincar com os efeitos que ela produz nas paredes das grutas, para melhor nos podermos rir ou chorar dela e com ela.

João Brites

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